O Papa Francisco, argentino de nascimento e líder espiritual de mais de um bilhão de católicos, percorreu o mundo ao longo de doze anos de pontificado. Desde que assumiu o comando da Igreja Católica, em 2013, ele passou por nada menos que 66 países. Visitou o Brasil, a Bolívia, o Paraguai, o Chile. Mas jamais retornou à sua própria terra natal: a Argentina.
Essa ausência sempre incomodou muitos de seus conterrâneos. Com sua morte na segunda-feira de Páscoa, a pergunta voltou a ecoar com ainda mais força: por que o papa nunca voltou ao lugar onde nasceu?
O papa que sobrevoou, mas não aterrissou
Logo nos primeiros meses de pontificado, Francisco veio ao Brasil. Foi uma recepção calorosa e inesquecível. O povo argentino esperava que ele fizesse o mesmo em casa, em Buenos Aires, onde nasceu, estudou, foi ordenado padre e onde tantos ainda guardam lembranças vivas de sua presença.
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Mas isso nunca aconteceu. Houve até quem dissesse, com certa melancolia, que o papa sobrevoou a Argentina… mas não aterrissou.
Durante anos, ele evitou dar respostas diretas aos jornalistas quando questionado sobre uma possível visita ao país. Falava sobre a agenda apertada, problemas logísticos, compromissos já assumidos. Depois veio a pandemia, o agravamento de sua saúde e, com isso, a esperança foi murchando pouco a pouco.
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Política, divisão e a dor de uma ausência
Para alguns próximos do papa, a razão de sua ausência ia além dos compromissos. O deputado argentino Eduardo Valdés, que foi embaixador no Vaticano e amigo pessoal de Francisco, sugeriu que ele preferiu não visitar um país tão dividido politicamente, temendo se tornar símbolo de disputa e não de união.
E essa ferida ficou ainda mais exposta quando, após sua morte, os políticos argentinos fizeram uma homenagem conjunta – um gesto raro de trégua. Foi nessa ocasião que Valdés disse: “Hoje conseguimos, Francisco. Aqui está o Congresso unido, em respeito a você.”
O silêncio que fala mais do que palavras
A verdade é que a relação entre o papa e a política argentina sempre foi delicada. Durante sua trajetória como arcebispo de Buenos Aires, Francisco chegou a criticar medidas do governo Kirchner. Depois, já como pontífice, recebeu Cristina Kirchner no Vaticano diversas vezes. Também se encontrou com Macri, Fernández e até mesmo com Javier Milei — que, antes de se eleger presidente, chegou a chamá-lo de “representante do mal na Terra”.
Milei, aliás, será um dos presentes na cerimônia de despedida do papa no sábado, em Roma. Uma contradição que marca não apenas a história recente da Argentina, mas também a complexidade do próprio pontificado de Francisco.
Uma decisão dolorosa, mas talvez necessária
O Arcebispo de Buenos Aires, Jorge García Cuerva, talvez tenha expressado com mais clareza o sentimento que muitos evitam dizer em voz alta: Francisco pode ter optado por não voltar para não ser fonte de conflito.
Afinal, como homem de fé, defensor incansável da paz, da justiça social e da conciliação, ele sabia que sua presença poderia acabar sendo usada para aprofundar rachaduras. Preferiu se manter longe, mesmo que isso custasse o reencontro com suas raízes.
Uma ausência que deixa marcas
Na Praça de Maio, após a notícia da morte, um fiel argentino resumiu bem o sentimento de muitos: “Ele era nosso. Mas nunca mais voltou para casa.”
É uma frase que carrega dor, saudade, frustração. Mas também admiração. Porque, mesmo distante fisicamente, o Papa Francisco nunca deixou de se preocupar com os pobres, com os marginalizados, com o sofrimento das pessoas comuns – na Argentina e no mundo todo.
E, como lembrou o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica, que foi seu amigo pessoal:
“Compartilhávamos as mesmas esperanças de um mundo mais justo. Sinto que ele se foi cedo demais.”
Francisco pode ter deixado sua terra para nunca mais voltar, mas jamais abandonou seu povo. Suas palavras, seus gestos e suas causas continuarão ecoando – inclusive na Argentina, onde seu silêncio talvez tenha dito mais do que qualquer discurso.
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